“Medo da eternidade.” É o título de uma crônica de Clarice Lispector que retrata, basicamente, o primeiro contato da autora com um chiclete. Ela diz ser muito pequena na época e apresenta a história nas ruas do Recife. Em determinado parágrafo, ela discorre sobre o “dramático contato com a eternidade”: “Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. [..] E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito.”
Apesar do chiclete não ser literalmente infinito, a autora descreve bem o motivo da fama: a durabilidade. E, por consequência, a inovação diante das balas e bombons da época. A goma entrou com tudo no mercado mundial e ainda está na boca do povo. Sua história é também a história da economia global e das duas grandes Guerras Mundiais. A ciência empregada envolve grandes avanços da indústria de polímeros e petroquímicos. O aumento do consumo, a popularização, as verdades e mitos e a proibição nacional em Singapura, tudo condensado no nome de um pedaço de borracha colorida.
Tire o chiclete da cabeça, se ainda conseguir, é claro.
Origem
O conceito de “goma de mascar”, não é nada recente. Civilizações antigas já exploravam as características antissépticas de produtos vegetais para cuidados com a higiene bucal. Os chineses mascavam ginseng, habitantes da América Andina mascavam folhas de coca, os gregos mastigavam uma seiva chamada de “mástique” (a origem da palavra “mastigar” e um patrimônio cultural imaterial da humanidade) e os maias mascavam o látex do sapotizeiro. As tradições se perpetuaram até servirem de base para a goma que conhecemos hoje. Até o nome veio por tabela: a seiva usada pelos maias era chamada de “chicle”.
Seiva esta que foi levada aos Estados Unidos em 1857 pelo exilado ex-presidente General Antonio Lopez de Santa Anna. O mexicano tentou propor um substituto para a borracha, mas deu a Thomas Adams, um inventor nova-iorquino, a base para o chiclete moderno. “Moderno” porque, até aquele momento, a coisa mais parecida era, basicamente, parafina.

Adams percebeu o potencial do chicle e o inseriu no mercado. Ele era mais macio, durava mais e era mais agradável do que a parafina (obviamente). Ele fez bolinhas com o chicle e vendeu sob o nome “Adams’ New York Chewing Gum, Snapping and Stretching.” Numa tradução livre: “Goma de mascar, esticar e estalar”. A ideia do Adams deu tão certo que, em 1889, ele estava à frente de um monopólio de produção de chiclete nos Estados Unidos: A Compania Americana de Chicle (do inglês American Chicle Company). Um de seus produtos mais famosos foi anexado em 1914, vendida da ideia dos irmãos Fleer. Eles cobriram a goma com açúcar, preservando e tornando-a ainda mais agradável ao paladar. A invenção foi batizada por eles de Chiclets. Sim. O mesmo Chiclets de hoje em dia.
A segunda Guerra Mundial popularizou ainda mais o consumo de chicletes. O ato de mascar mantinha a mandíbula dos soldados ativa, e era visto como relaxante e terapêutico pelos civis.
A alta demanda pelo produto tornou inviável prosseguir com o uso de resinas naturais. A partir da década de 1960, as empresas começaram a investir e usar conhecidos derivados de petróleo, como a borracha sintética.
Só no Brasil, balas e chicletes atingiram o faturamento de 10 bilhões em 2011. O consumo anual de goma de mascar tem números estimados em cerca de 560 000 toneladas. O equivalente a 4 mil baleias azuis. Não é à toa que o chiclete é um dos doces mais famosos do mundo.
Composição
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) define como goma de mascar o “produto constituído por base gomosa, elástica e não deglutível. Pode conter outros ingredientes, desde que não descaracterizem o produto, e apresentar recheio, cobertura, formato e consistência variados.” Essa característica elástica é atribuída à chamada goma base.

A composição específica da goma é, na grande maioria dos casos, segredo de marca. A informação nem consta nos ingredientes do produto. Porém, a ANVISA restringe a composição da goma base à cerca de 48 compostos. Dos quais vinte são obtidos de fontes “naturais” (latéx e ceras animais). Os compostos sintéticos são, sem dúvida, os mais usados. Entre eles, destacam-se os derivados de petróleo. O acetato de polivinila, componente da cola branca; o poli-isobuteno, a borracha das câmaras de ar de pneus de bicicletas; e o copolímero estireno-butadieno, usado na fabricação da sola de sapatos. Pois é.
Todos os ingredientes da goma base, inclusos os derivados de petróleo, emulsificantes, e antioxidantes, são aquecidos e misturados até ficarem homogêneos. Quando pronta, a goma é colocada em formas e resfriada. O resultado final é similar a azulejos de borracha comestíveis.
Quando o assunto são chicletes, é instantâneo lembrar do rosa do tutti-frutti e do frescor da hortelã (ou da menta, tanto faz). Nessa etapa da produção, a goma base é derretida e misturada com açúcar, aromas, corantes, ácidos cítricos, adoçantes, glicerina, entre outros químicos que definirão o sabor da goma. O caráter indefinido do tutti-frutti o torna excepcionalmente singular. Cada empresa e até cada país tem seu próprio conceito de o quê vai na mistura de frutas. No Brasil, por exemplo, ele geralmente significa laranja, banana, abacaxi, morango e baunilha. A menta, no entanto, não muda. O sabor refrescante é consequência da reação do mentol em meio ao ambiente morno da boca. Lá, ele ativa certos receptores sensoriais responsáveis pela sensação de frio, gelando toda a boca. O mentol também é usado em balas, pomadas e pastas de dente. Sempre associado ao alívio gelado.

Depois essa massa recebe seu formato. Bolinhas, tiras, dentaduras, garrafas, pastilhas e o que a criatividade permitir.
Alguns chicletes ainda tem recheios, grânulos de açúcar ou “cascas”. Eles requerem processos específicos; como um banho de xarope para a formação das cascas de açúcar ou uma injeção de caldo para os recheados.
Por fim, é uma questão de embalagem. Seja caixa, envelope, saco plástico, os chicletes são acomodados e enfim enviados aos consumidores.
Mesmo após todo esse processo é difícil acreditar que a mesma borracha que fez a goma de mascar poderia ter sido usada no chinelo que está no armário. E apesar do ingrediente em comum, não seria uma boa ideia sair comendo os calçados da casa.
Extra: A proibição em Singapura.
Ninguém sabe onde fica Singapura, muito menos que ela é uma cidade-estado insular da Ásia, menos ainda que ela ocupa o nono lugar no ranking mundial do desenvolvimento humano (atrás na Ásia apenas de Hong Kong). Mas muita gente sabe que lá, o comércio e importação de chicletes são proibidos. Tal infração é punida com multa de até cem mil dólares de Singapura (cerca de R$ 350 mil). O descarte incorreto da goma poluía estações de metrô, praças, ruas e outros locais públicos. O governo vigente em 1992, optou pela proibição da venda e cortou a raiz do problema. Singapura é, atualmente, uma das cidades mas limpas do planeta.
Verdadeiro ou falso?
Não é exagero afirmar que o chiclete é mundialmente conhecido. Várias superstições, dúvidas e opiniões são atribuídas a ele. Algumas tendenciosas, outras sem fundamento algum.
Provavelmente pelos derivados de petróleo na composição, espalhou-se o boato de que o chiclete nunca se decompunha. O que é mentira. Um chiclete não costuma passar de cinco anos em contato direto com ambientes externos. O tempo é relativamente pequeno, se comparado a outros compostos a base de polímeros. O plástico, por exemplo, demora noventa vezes mais para se decompor.
Alguns estudos chegaram a argumentar sobre a relação entre o uso de chicletes e a sensação de saciedade. Eles diziam que o chiclete poderia ajudar a emagrecer por satisfazer o estômago sem haver a ingestão. O problema é que esses estudos foram lançados pelo Instituto Wrigley de Ciência, parte da Wrigley Company, a maior indústria de goma de mascar do mundo. Em 2013, esses estudos foram refutados. Mascar chiclete de estômago vazio pode, inclusive, gerar problemas estomacais. O estômago entende a mastigação como um sinal de “hora do almoço” e começa a produção de ácidos digestivos. A comida nunca vem, e a parede do estômago pode sofrer sérios danos, como o desenvolvimento de gastrite.
Tem gente que não consegue fazer prova sem um chiclete. “Ajuda a me concentrar.” Essa afirmação realmente possui base científica! Ou seja, é verdade. A Universidade de psicologia de Cardiff testou 38 pessoas em uma tarefa de 30 minutos. A longo prazo, a metade que mascou chiclete obteve respostas mais rápidas e corretas do que a metade que não mascou. Segundo os pesquisadores, isso sugere que o ato de mascar chiclete ajuda no foco em tarefas que demandam longos períodos de tempos. Pesquisas da Universidade Northumbira e do Brain Science Institute também provaram que a mastigação está relacionada a uma melhora no estado de alerta e diminuição do cortisol salivar. Ou seja, o chiclete reduziu o nível de ansiedade e estresse dos participantes do estudo.
Um dos muitos usos do chiclete, principalmente os de menta, é o disfarce de mau hálito. Ele até ajuda na hora; porém, não substitui a escovação (a maçã também não). O chiclete ajuda na produção de saliva, o que “lava” a boca; em contrapartida, aumenta a proliferação de bactérias. Ele é mais um “tapa-buraco” do que uma solução efetiva.
Por fim, a mais conhecidas entre as superstições do tema: “Se você engolir um chiclete, ele fica preso no intestino por sete anos. Engolir chiclete cola as tripas.” Não, nenhuma das duas tem fundamento. Astronautas, por exemplo, precisam engolir seus chicletes para preservar a limpeza do módulo espacial. O chiclete pode ficar preso no intestino? Pode. No de crianças que tenham engolido muitas porções da goma. “Muitas”, nesse caso, significam cerca de cinco a sete chicletes por dia. Na maioria dos casos normais, o chiclete acha seu caminho pelo intestino até o reto e é excretado normalmente. Afinal, a goma base não é quebrada pelos sucos intestinais. Portanto, se você engoliu um chiclete no sábado passado, fique tranquilo, você não vai morrer.
O chiclete é um legado humano. A goma esteve presente em vários eventos ao longo da história. Ela marcou gerações e continuará enquanto estiver na beirada de caixas e na saída de restaurantes. O chiclete é um símbolo da globalização e do mundo contemporâneo. Pense nisso da próxima vez que estourar uma bola.